Flavia Helena de Lima

Segundo a mais recente versão do Atlas da Violência, um dos estudos¹  mais importantes de mapeamento em números da situação da segurança pública no país, em 2017, 75,5% das vítimas de homicídio no Brasil eram negras. A pesquisa mostra, ainda, que 91,8% das vítimas eram homens e 55% tinham entre 15 e 29 anos. Em relação às mulheres, 66% das vítimas de violência letal eram negras e entre as vítimas de feminicídio, que registrou um crescimento 30,7%, 60,5% eram negras.

Estes números são apenas alguns dos indicadores contidos no estudo, que apresenta, por meio de dados, a realidade experimentada na prática por esta parcela da população que é inquestionavelmente vulnerável, o que reforça a necessidade de promoção de medidas voltadas à sua proteção.  

Não há outra escolha senão reagir, e parece ser a partir desta premissa que Flavia Helena Lima, advogada especialista em casos de racismo e denúncias internacionais de violações de direitos humanos, vem trabalhando ao longo dos últimos 20 anos.  

Sua primeira experiência no campo do enfrentamento do racismo a partir do Direito foi por meio de um voluntariado, que posteriormente se tornou estágio, junto ao GELEDÉS – Instituto da Mulher Negra, sediado em São Paulo/SP. O programa SOS – Racismo, operado pela organização, oferecia gratuitamente às vítimas de discriminação racial e violência, assessoria jurídica e psicossocial num momento de consolidação da Lei nº 7.716/89, que inaugurou no sistema legal brasileiro um tratamento jurídico específico aos crimes resultantes de preconceito desta natureza.

Com a judicialização dos primeiros casos de racismo, foi também necessária toda uma articulação de estratégias para garantir que, a despeito da resistência do Judiciário em puni-los (já que, frequentemente, ou os inquéritos eram arquivados sem oferta de denúncia pelo Ministério Público, ou o crime de racismo era desqualificado para crime de injúria), os processos fossem levados à frente.

Flavia viu neste trabalho um instrumento importante para a mudança na dinâmica das relações raciais e promoção do empoderamento da população negra, tendo conhecido, partir desta experiência, inúmeras outras organizações do movimento negro e de direitos humanos no Brasil e exterior. “Eram milhares de pessoas lutando por um mundo mais justo, igualitário e livre de qualquer tipo de discriminação, e imediatamente descobri que queria me unir a eles, e que só assim meu trabalho faria sentido pra mim”, diz.

Após concluir a graduação, Flavia se mudou para Florianópolis/SC e lá conheceu o Núcleo de Estudos Negros (NEN), onde foi contratada para atuar como advogada do projeto S.O.S. Racismo e a partir da organização, foi responsável por conduzir o processo que resultou na primeira condenação de uma empresa por racismo no ambiente de trabalho no Brasil. Ainda em Florianópolis, Flavia também participou de inúmeros debates na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) para a construção de uma política de cotas e implantação do sistema na instituição.

Estes esforços, não surpreendentemente, ultrapassaram os muros do Brasil e alcançaram a esfera internacional. Em um treinamento na Justiça Global, organização não governamental sediada no Rio de Janeiro/RJ, Flavia aprendeu a instrumentalizar os mecanismos internacionais de proteção dos direitos humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) e Organização dos Estados Americanos (OEA) e direcionou sua atuação a este campo, sem perder de vista o que sempre foi seu principal objetivo: a luta contra a discriminação racial.

“Pude participar das reuniões da Comissão Interamericana de Direitos Humanos em Washington D.C. e interagir com organizações que atuam nas Américas, com temas,  até então desconhecidos para mim, como o desaparecimento forçado, direitos dos imigrantes e direitos econômicos sociais e culturais.

Pude construir a denúncia do caso Wallace de Almeida, jovem assassinado pela polícia em frente a sua casa no morro da Babilônia no Rio, que resultou na condenação do Estado Brasileiro.

Depois disso tive a oportunidade de atuar em conjunto com outras organizações da América Latina na construção e aprovação da Convenção Interamericana contra o Racismo, Discriminação Racial  e Formas Correlatas de Intolerância.

Participei também da capacitação do Internacional Service on Human Rights, em Genebra, durante os períodos de sessão do Alto Comissariado de Direitos Humanos da ONU.”, conta.

Foi ao longo desta bonita trajetória que Flavia conheceu o Instituto de Desenvolvimento e Direitos Humanos (IDDH), com quem trabalhou em uma capacitação abordando o tema do racismo e cujo trabalho acompanha desde então.

Flavia acredita que não existe ambiente mais importante para trabalhar com direitos humanos do que o da educação, e o IDDH possibilita aos  educadores capacitação, troca de experiências e acesso a novas práticas exitosas que contribuem no dia a dia em sala de aula, ferramentas fundamentais para garantir que o tema esteja presente nas escolas.

Nesta direção se constrói o seu maior desejo para o futuro: que os direitos humanos sejam trabalhados “em todas as escolas, desde o primeiro contato com os alunos, criando uma nova forma de convivência social, com respeito às liberdade individuais, sem discriminação, e, quem sabe assim, teremos uma sociedade mais justa e igualitária”.

https://revistaforum.com.br/rede/uneafro-brasil-atlas-da-violencia-2019-mostra-que-genocidio-da-juventude-e-das-mulheres-negras-continua/

http://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/download/19/atlas-da-violencia-2019

https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,75-das-vitimas-de-homicidio-no-pais-sao-negras-aponta-atlas-da-violencia,70002856665

https://www.bbc.com/portuguese/brasil-48521901

1 O Atlas da Violência publicado em 2019 foi um estudo conduzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que aponta 65 mil homicídios registrados em 2017.