A atualidade política brasileira, envolvendo a controvérsia em torno da redução da maioridade penal no Congresso desvela a realidade de um Direito repleto de vontade e liquidez.
Liquidez, pois o Direito enquanto fenômeno social da vida contemporânea sofre as ingerências ambientais desta modernidade líquida na qual se inscreve, marcada pela falta de certezas, pelo desencantamento dos valores, pelo consumo absoluto e pela busca da vontade enquanto poder.
Essa busca demonstra a incansável motivação do sujeito moderno por uma performance que o realize por inteiro, que o coloque no centro da sua vontade em acordo com a vontade do mundo. Nada mais é certo, tudo é trivial e pode acontecer em um mero ato de vontade.
Esta breve reflexão, desvela a face de um Direito em ascensão feito em meio aos inputs e outputs da vida moderna: a conjunção de interesses privados, a ausência de uma razão pública que balize o próprio Direito e a crise da segurança jurídica são mazelas de um Estado Democrático de Direito sem rumo.
Este modelo tem sido substituído pela vontade e pela liquefação provocadas pela acolhida do fundamentalismo religioso, da intolerância, do flagrante desrespeito às normas constitucionais em um jogo de poder que nada tem a ver com o sujeito de direito.
A manobra legislativa realizada pelo Parlamentar Eduardo Cunha (PMDB) nesta quarta-feira (01) visando a aprovação da redução da idade penal no país é poder pelo poder, manifestado na vontade para vencer este grande jogo chamado Política. O deputado que permite cultos no Parlamento violando o Estado Laico escancaradamente, além de estar alinhado aos interesses das bancadas da “bíblia”, da “bala” e do “boi”, foi listado pelo Procurador Rodrigo Janot na denúncia formal da operação Lava-Jato, fato este que parece ter sido esquecido por todos, talvez por que o parlamentar não possua qualquer ligação com o PT.
Ao perder a última votação por apenas 5 (cinco) votos, Cunha admitiu ao Portal G1: “Eu estou com raiva que eu não posso votar. Eu pretendo que se reinterprete o regimento para que eu possa votar”.
Assim, para Cunha a Constituição da República Federativa do Brasil e a própria finalidade do Direito e da Política acabam convertidas para vitória de interesses privados que nada tem a ver com o sujeito de direito em questão. Não passam de textos e costumes passíveis de qualquer “reinterpretação”, reduzidos ao contexto que se pretende arranjar e rearranjar. Tudo é possível para os “Malafaias”, “Cunhas” e “Bolsonaros” da República.
Neste jogo de custe o que custar, o artigo 60, § 5 da Carta Magna que reza “A matéria constante de proposta de emenda rejeitada ou havida por prejudicada não pode ser objeto de nova proposta na mesma sessão legislativa”, fica “reinterpretado” longe das balizas do Estado Democrático de Direito, para os “Cunhas”.
Munidos do argumento de que vão realizar a “vontade da maioria”, os Cunhas do Brasil ludibriam a população pelo sensacionalismo que não encontra respaldo em dados estatísticos. Considerando a população brasileira lê 4,7 livros por ano, de acordo com o relatório “Retratos da Leitura do Brasil” do Instituo Pró-Livro e que grande parte tem como fonte única de informação veículos de mídia altamente questionáveis, a manipulação de mentes pela vingança contra “menores criminosos” parece uma manobra simples, a exemplo daquela feita por Cunha para aprovar projeto de lei rejeitado, na mesma sessão legislativa.
De acordo com o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen, divulgado pelo Ministério da Justiça neste mês, o diagnóstico da situação prisional do país está longe de comportar a ilógica PEC a favor da redução. De acordo com o documento, o Brasil é o quarto país do mundo com a maior população prisional do mundo, atrás de Estados Unidos, China e Rússia. Ao contrário destes países, o Brasil deve aumentar o número de aprisionados nos próximos anos. Quanto à taxa de aprisionamento, o Brasil perde apenas para a Indonésia, tendo um salto de 130% de 2005 a 2014. Existem atualmente no país, de 300 a 450 pessoas presas para cada grupo de 100 mil habitantes. Em 2014, 44% dos encarcerados eram provisórios e 61 % tinham mais de 90 dias de aprisionamento sem qualquer condenação.
Neste jogo de incertezas, não se sabe para onde a democracia brasileira está remando na liquefação do seu próprio Estado Democrático de Direito. Sabe-se contudo, que esta discussão nada tem a ver com adolescentes e crianças, em sua maioria, negras de baixa renda sem condições básicas de sobrevivência, sobretudo sem Educação que deveria ser provida pelo Estado. O mesmo Estado que não corrige as condições desfavoráveis daqueles que nascem em favelas, subúrbios perigosos onde reina a criminalidade e em meio a total deseducação e falta de oportunidades é o mesmo que acusa e encarcera atendendo as vozes da maioria.
No país, criou-se o triste hábito de negligenciar prioridades políticas e remediar problemas sociais que defluem da própria falta de realização dessas prioridades. A criminalidade entre jovens se trata de um problema deste tipo: é reconhecido pela sociedade que a Educação é o princípio redutor da criminalidade, mas pede-se por mais e mais encarceramento para remediar os danos que já são concretos. A questão envolvendo cotas para afro-descentes em universidades ou médicos vindos de Cuba são exemplos deste tipo de gestão governamental, quando não se realizam as prioridades e se demandam cada vez mais paliativos, dividindo a opinião pública.
A Educação voltada para os valores dos Direitos Humanos enquanto fonte de empoderamento do sujeito é a grande força combativa da criminalidade em nosso tempo. Em contrapartida, a batalha de Cunha pela aprovação da medida a qualquer custo, reforça o racismo e a discriminação social contra jovens marginalizados pela falta de políticas públicas capazes de conter o problema da criminalidade na infância e juventude através da educação, cultura e lazer.
Neste cenário, vale refletir: Quantos Cunhas Malafaias, Bolsonaros e Maiorias serão necessários para evaporar totalmente as frágeis certezas que ainda balizam a democracia brasileira?
* Por Ana Catarina de Alencar. Assessora Jurídica do Instituto de Desenvolvimento e Direitos Humanos (IDDH).
Fontes:
Eduardo Cunha realiza manobra e redução da maioridade pode ser aprovada
http://www.cartacapital.com.br/blogs/parlatorio/com-nova-manobra-de-cunha-camara-aprova-reducao-da-maioridade-penal-4715.html
http://www.brasil.gov.br/cultura/2015/07/ministerios-da-educacao-e-cultura-apostam-em-aumentar-a-leitura
http://seculodiario.com.br/23491/11/ministerio-da-justica-divulga-relatorio-atualizado-do-sistema-penitenciario-brasileiro
http://www.pragmatismopolitico.com.br/2015/07/explicando-o-golpe-de-eduardo-cunha.html