Audiência sobre educação plural, livre e sem censura na CIDH

O Instituto de Desenvolvimento e Direitos Humanos (IDDH) e a Campanha Nacional pelo Direito à Educação participaram ontem (25/05) de audiência da Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, em Buenos Aires. A audiência foi solicitada de ofício pela CIDH para tratar do tema educação plural, livre e sem censura no Brasil. Fernanda Lapa, coordenadora executiva do IDDH, solicitou à CIDH que aprofunde o debate sobre o alcance do direito humano à educação dentro do sistema interamericano para acolher melhor a educação em direitos humanos, em especial uma educação de gênero e diversidade sexual.

As outras organizações da sociedade civil foram: ABGLT, Comissão de Diversidade Sexual da OAB/PR, a Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Estado do Paraná e Defensoria Pública do Paraná. Os temas tratados foram a retirada da expressão gênero e orientação sexual dos planos de educação e Base Nacional Comum Curricular e os impactos do Programa “Escola sem Partido” nas escolas.

Os comissionados ressaltaram a importância de uma educação de gênero e diversidade para prevenir crimes de machismo, racismo e homofobia. Já o Estado Brasileiro não levou representantes do Ministério da Educação, alegando falta de recursos, e sustentou que a BNCC e os planos de educação já contemplam uma educação de gênero e de orientação sexual.

Foi solicitado que a CIDH faça um relatório temático sobre este tema no continente, que solicite um Opinião Consultiva à Corte Interamericana sobre o alcance do direito humano à educação, e, ainda, que se manifeste publicamente contra este movimento de censura no Brasil.

 

Confira na íntegra a fala de Fernanda Lapa, apresentada na audiência pública da Comissão Interamericana de Direitos Humanos:

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Declaração feita pela coordenadora executiva do Instituto de Desenvolvimento e Direitos Humanos – IDDH – Sra. Fernanda Lapa, durante o 162º período de sessões da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, no dia 25 de maio de 2017 (Buenos Aires)

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Senhores Comissionados,

Representantes do Estado Brasileiro,

Senhoras e Senhores,

Primeiramente gostaríamos, em nome do Instituto de Desenvolvimento e Direitos Humanos, a Campanha Nacional pelo Direito à Educação e a todas as crianças e professores no Brasil, de cumprimentar a CIDH por ter solicitado DE OFÍCIO esta audiência sobre um tema de extrema relevância para a sociedade brasileira. Não podemos deixar de mencionar que, depois de mais de 30 anos, nossa democracia está sendo colocada em teste e é, exatamente num momento como esse, que o tema da educação se torna extremamente fundamental numa sociedade.

Iniciarei minha intervenção com este ponto. Porque uma educação livre, plural e sem censura se torna fundamental em momentos como esse? Porque precisamos de cidadãs/ãos capazes de conhecer, refletir e compreender a realidade e o mundo plural em que vivem.

O artigo 13.2 do Protocolo de San Salvador afirma que:

– a educação deverá orientar‑se para o pleno desenvolvimento da personalidade humana;

– deve fortalecer o respeito pelos direitos humanos, pelo pluralismo ideológico, pelas liberdades fundamentais, pela justiça e pela paz;

– também, que a educação deve capacitar todas as pessoas para participar efetivamente de uma sociedade democrática e pluralista;

Ou seja, o direito humano à educação contempla tanto o direito de acesso e permanência nas escolas, mas também que o conteúdo desta educação deve visar o pleno desenvolvimento humano. E, neste sentido, a educação em direitos humanos torna-se um componente fundamental do direito humano à educação. Educação em direitos humanos é necessária para prevenir qualquer violação de direitos humanos. É provado em diversas partes do mundo que sem este tipo de educação a violência na sociedade aumenta e que com esta educação nas escolas, na mídia, nos sistemas de justiça e nas ruas, o índice de violência diminui.

Parece-nos que o Estado Brasileiro já reconheceu a importância da EDH faz tempo, pois o Brasil em 2003 foi o primeiro país da América Latina a criar um Plano Nacional de Educação em Direitos Humanos (o qual infelizmente não teve em 15 anos nenhuma avaliação) e tem diretrizes específicas sobre o tema. Em 2005, adotou o Programa Mundial de Educação em Direitos Humanos da ONU. Na região, recentemente teve uma atuação protagonista para a criação de Diretrizes de EDH para o Mercosul. E, sempre que se manifesta, seja no Brasil, na ONU ou na OEA, reforça que a educação em direitos humanos é sua prioridade.

Então gostaríamos de perguntar: porquê um Estado que tem a EDH como prioridade chegou nesta situação de retirar termos como gênero e orientação sexual de seus textos base de educação e tem permitido uma fiscalização e censura desses conteúdos nas escolas?

Este programa que ficou conhecido “Escola sem Partido” foi criado em 2004 mas ganhou mais visibilidade 10 anos depois, em 2014, quando representantes deste movimento começaram a apresentar em estados e municípios brasileiros projetos de lei que sustentavam esta suposta neutralidade ideológica. Na esfera federal, foram apresentados um projeto de lei na Câmara dos Deputados (PL 867/2015) e outro no Senado Federal (PL 193/2016) que ainda estão tramitando. Mesmo não aprovados, os PLs provocaram um amplo debate na sociedade brasileira que ficou dividida entre: a) educadores, organizações não governamentais, especialistas e estudantes que defendem uma educação livre, plural e sem censura e, do outro lado, b) pais juntamente com um movimento religioso-político que querem obrigar as escolas a respeitar suas convicções quanto à educação moral, religiosa e sexual.

Enfim, cremos não ser necessário neste momento, pelo pouco tempo, comprovar mais uma vez que este Programa viola direitos humanos tanto no âmbito interno como internacional, uma vez que instituições do próprio Estado já o reconheceu. Há diversas manifestações e documentos oficiais do próprio Estado Brasileiro contrariando este Programa: notas técnicas da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão do Ministério Público Federal, a Secretaria de Direitos Humanos, através de seu Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos e o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e Adolescente (CONANDA), a Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi) do MEC e o próprio Supremo Tribunal Federal que reconheceu que há violações de direitos humanos neste projeto da Escola Sem partido e afirmou que o direito humano à educação deve visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana e à capacitação para a vida e cidadania.

Em âmbito internacional, o tema já foi destacado.

Na OEA, na audiência da CIDH sobre educação em direitos humanos, em dezembro de 2016 no Panamá, esta Comissão manifestou sua preocupação com iniciativas legislativas que pudessem implicar um retrocesso em direitos humanos em vez de fortalecer as iniciativas em matéria de educação em direitos humanos . A CIDH naquele momento chamou o Estado a redobrar seus esforços para desenvolver campanhas e capacitações de tolerância, inclusão e não discriminação.

Na ONU, após diversas incidências da sociedade civil desde o ano passado, os Relatores Especiais de liberdade de expressão, educação e liberdade religiosa fizeram um comunicado ao Estado Brasileiro demonstrando os perigos das retiradas dos termos de gênero e orientação sexual dos planos de educação no Brasil.

O Comitê sobre os Direitos da Criança (CRC/ONU) recomendou ao Brasil “b) decretar legislação que proíba discriminação ou incitamento de violência com base em orientação sexual e identidade de gênero assim como continuar o projeto “Escola Sem Homofobia”;  c) priorizar a eliminação de atitudes patriarcais e estereótipos de gênero, inclusive por meio de programas educacionais e de sensibilização”.

Neste início de mês ainda o Brasil também recebeu diversas recomendações de outros países durante o processo da Revisão Periódica Universal sobre a importância de trabalhar temas de educação de gênero e diversidade sexual. Dos 103 países que participaram do processo de sabatina ao Brasil, 26 fizeram recomendações substanciais relativas a discriminações e violências movidas por questões de orientação sexual e/ou de gênero.

Ou seja, cremos que já temos provas suficientes para afirmar que este Programa viola direitos humanos, tanto em âmbito interno como internacional. O que precisamos é que o Estado Brasileiro seja mais enérgico para combater os efeitos que este movimento tem causado para os educadores e alunos nas escolas. Aos alunos que têm seu direito humano à educação violado, pelo não recebimento de informação e formação adequadas; aos professoras/es que têm limitada sua liberdade de cátedra e a ambos que possuem sua liberdade de expressão violados. Os efeitos negativos deste Programa já são concretos, mesmo que os PL não tenham sido aprovados ou que legalmente ele seja inconstitucional. Esse efeitos serão melhor esclarecidos por meus colegas.

Considerando que os retrocessos na educação em direitos humanos, em especial na educação de gênero e diversidade sexual, podem ser observados não apenas no Brasil, mas em outros países das Américas, pensamos é um tema que a CIDH poderia aprofundar, talvez com a elaboração de um relatório temático sobre a situação da educação de gênero e diversidade sexual na região.

Por atuarmos em diversos espaços de diálogo e construção de políticas de educação em direitos humanos em âmbito nacional e internacional, percebemos que há um desafio em se delimitar o alcance do direito humano à educação. Já se foi tentado criar um relatoria específica de educação em direitos humanos nas Nações Unidas há muitos anos o que acabou não ocorrendo até o momento. Neste momento a relatoria do direito humano à educação está tentando identificar o quanto a pauta da educação em direitos humanos está absorvida na agenda do direito à educação. Sendo assim, cremos seria muito importante que houvesse uma Opinião Consultiva da Corte Interamericana sobre o alcance do direito humano à educação no sistema interamericano, ou seja, o que está contemplado dentro deste direito.

Por último, solicitamos que haja um posicionamento público da CIDH como resultado desta audiência que ressalte a preocupação com a retirada das questões de gênero e orientação sexual da base comum curricular envolvendo as Relatorias pertinentes para se manifestarem sobre os direitos humanos violados respectivamente em seus mandatos: DHESC, LGBTI, Mulheres, Crianças e Liberdade de Expressão.

Pensamos que essas solicitações estão devidamente incorporadas ao novo Planejamento Estratégico desta CIDH (2017-2021), em especial no Objetivo Estratégico 3 que aborda programas de educação em direitos humanos e seria uma oportunidade para que a CIDH atuasse mais no rol da promoção de direitos humanos, neste caso, no tema educação em direitos humanos.

Muito obrigada.

Assista aqui a audiência completa.