#8demarço – Por que a educação sobre “gênero” assusta nossa sociedade? (Por Fernanda Lapa)

As políticas atuais da educação brasileira sustentam de forma direta ou indireta a inclusão do tema gênero nas escolas. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), em 1998, já orientavam que a educação de gênero na escola é importante para combater “relações autoritárias, questionar a rigidez dos padrões de conduta estabelecidos para homens e mulheres e apontar para sua transformação”. O Plano Nacional de Educação, em 2014, apesar de ter as expressões “gênero” e “igualdade de gênero” suprimidos do texto final, sustenta a erradicação de todas as formas de discriminação, a superação das desigualdades educacionais e o respeito aos direitos humanos e à diversidade. A Lei Maria da Penha destaca que todos os currículos escolares devem ter conteúdos relativos à equidade de gênero e de raça ou etnia. O Plano Nacional de Políticas para as Mulheres (2013-2015) tem como um de seus objetivos eliminar conteúdos sexistas e discriminatórios assim como promover a inserção de temas voltados para a igualdade de gênero e valorização das diversidades nos currículos e materiais didáticos. A UNESCO lançou em 2014 um documento orientando os Estados a incluírem temas como os estereótipos de gênero e a violência baseada em gênero nos currículos escolares.

Se a promoção da igualdade de gênero é um tema tão presente nas regras e orientações legais que tratam sobre educação em geral e na educação em direitos humanos, devemos nos perguntar porque este assunto ainda é tão pouco explorado na educação brasileira e porque se encontra ainda tanta resistência, nas mais diversas camadas sociais, a uma discussão permanente sobre gênero e diversidade.

Uma das causas desta deficiência na formação dos sujeitos reside na falta de sistematização do conteúdo a ser ministrado nas escolas de Ensino Fundamental e Ensino Médio a fim de garantir impactos de médio e longo prazo na sociedade. Outra causa é a falta de formação dos/das professores/as para fazerem um debate que promova a desconstrução de estereótipos historicamente cristalizados que tendem a justificar e legitimar, sob os mais diversos fundamentos, as desigualdades de gênero. Na luta contra as violentas consequências do sexismo e da intolerância, precisamos enfrentar o problema da formação e dos preconceitos reproduzidos pelos próprios educadores/as que participam do processo de formação de nossas crianças.

No entanto, mesmo tendo ganhado força nos últimos anos o debate sobre a necessidade de criação de políticas públicas sobre igualdade de gênero, ainda é latente a resistência ao tema em grande parcela da sociedade. E a pergunta que fica é: por quê? O que será que assusta a tantas pessoas o debate sobre “gênero” nas escolas?

Creio que um ponto é a confusão de que o debate sobre identidade de gênero restringe-se ao debate sobre orientação sexual. Ou seja, que educar sobre gênero (entender e debater como culturalmente são associadas características para o ‘feminino’ e o ‘masculino’ nas sociedades) significará influenciar as orientações sexuais das crianças (sexo das pessoas com as quais tenho desejo, afeto e atração).

cartoonDe qualquer forma, pergunto: faria mal discutirmos sobre sexualidade nas escolas? A educação sexual no Brasil na maioria das vezes é biologizante e restringe-se ao debate sobre a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis/DST’s (quem nunca teve uma palestra dessas na escola?). A questão é que esta abordagem, apesar de importante, não consiste em toda a educação sexual e, muito menos, em todo o debate sobre gênero.

Em que momento discutiremos com nossas crianças e adolescentes questões como diversidade sexual, desejo e prazer? Será que somente devemos entrar neste assunto para falar, por exemplo, sobre gravidez na adolescência ou violência contra as mulheres? Todos esses temas devem ser debatidos e refletidos na escola, mas será que não devemos também dialogar sobre a construção da identidade pessoal de meninas e meninos e, dentro dela, a identidade sexual e de gênero?

Na escola conseguimos identificar preconceitos, homofobia e sexismo e é lá que podemos transformar isso num debate sobre diversidade, cidadania e direitos humanos. A escola, com seus funcionários e professores/as, deve estar preparada para conduzir o debate de forma não maniqueísta e despido de uma vigenerosão biologicista, onde existe um padrão normal e um “anormal” que deve se adequar ao standard do sexo de nascimento ou acabará “eliminado” do sistema (e aí a evasão escolar).

A escola é o lugar ideal para provocar na criança e adolescente a convivência com a diferença. É na primeira formação pedagógica que melhor se consegue criar as bases do respeito e da igualdade.  A escola não deveria ser o lugar para incentivar a discriminação e perpetuar a desigualdade.

Infelizmente, essa visão conservadora de não discutir gênero, raça e direitos humanos nas escolas e que isso é assunto privado (para dentro de casa ou das igrejas) reproduz uma sociedade discriminatória e violenta e o pior é que ao se perpetuar isso nas escolas de nossas crianças hoje, estaremos formando que tipo de adultos para o amanhã?

 

Por FERNANDA CORTEFernanda Brandão Lapa

Coordenadora-Executiva do IDDH – Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e Mestra em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora de Direitos Humanos, Direito Constitucional e Direito Internacional Público na Universidade da Região de Joinville (Univille). Fundadora e Coordenadora da Clínica de Direitos Humanos da mesma universidade. Membro titular do Comitê Nacional de Educação em Direitos Humanos.