No dia 8 de março celebramos internacionalmente o dia da mulher. Ao invés de reforçar estereótipos de gênero associados a uma ideia essencialista de mulher – feminina, mãe, cuidadora, meiga -, esse dia marca as reivindicações das mulheres por melhores condições de vida e trabalho, abarcando direitos civis e políticos.
Historicamente, as mulheres tiveram um forte protagonismo nos movimentos por reconhecimento de direitos fundamentais, mas sua participação muitas vezes foi silenciada e suas próprias reivindicações negligenciadas. Mesmo que tenham tomado a Bastilha com os homens, as mulheres francesas foram excluídas da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em 1789. Por esse motivo, a feminista e revolucionária francesa Olympe de Gouges escreveu a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, defendendo os direitos das mulheres e a democracia.
Passados alguns séculos, vivemos em um tempo de avanços e retrocessos. Em muitos países as mulheres já conquistaram direitos civis e políticos, pois sua capacidade civil já não é mais condicionada aos homens (sejam pais ou maridos), podem se divorciar, votar e se candidatar a exercer a política nos poderes executivo e legislativo. Mas ainda estamos muito distantes de garantir os direitos das mulheres, em uma sociedade que atribui privilégios aos homens pelo sistema patriarcal. Esse sistema funciona a partir de dualismos: homem/mulher, razão/emoção, cultura/natureza, branco/não branco, cis/trans, heterossexual/homossexual, rico/pobre e assim por diante.
Nessa lógica, temos a associação de um lado do dualismo em detrimento de outro: homem, razão, cultura, branco, cis, heterossexual, rico. Do outro, temos a associação entre mulher, emoção, natureza, não branco, trans, homossexual, pobre. Entendendo essa estrutura a partir de dualismos, é fácil perceber como funcionam os sistemas de privilégios que valorizam mais os homens e tudo que está ao lado deles. Mas isso nos leva a perceber também que se o homem não for branco, cis ou heterossexual, ele não será beneficiado por todos os privilégios. Isso ocorre em razão das relações de poder das quais decorrem padrões de discriminação. Essa constatação nos aponta a necessidade de trabalhar de forma interseccional, ou seja, não é possível manter um olhar restrito ao machismo, pois ele opera junto com racismo, classismo e outros “ismos” de dominação.
Dentre esses outros “ismos”, podemos incluir também o especismo, se ampliarmos nosso círculo de consideração moral e percebermos nossas relações também com não humanos e natureza. Esse âmbito de moralidade nem sempre incluiu pessoas negras, por exemplo, quando existia a escravidão, ou mulheres, quando não tínhamos nenhum direito reconhecido. Fazendo uma analogia com racismo e sexismo, especismo foi um termo cunhado por Richard D. Ryder, na década de 1970, a fim de conceituar a discriminação baseada na espécie. Mas qual a relação entre especismo e machismo? Ecofeministas explicam que entre todas as formas de discriminação existe a mesma lógica de dominação. A partir de estruturas conceituais marcadas por dualismos, essa lógica funciona para “justificar” moralmente uma ação que seria moralmente injustificável, isto é, faz parecer “normal” homens serem superiores a mulheres porque são mais racionais do que nós, supostamente mais emocionais.
Além dessa conexão conceitual, que explica a relação entre racismo, machismo, classismo, sexismo e outros “ismos”, há uma conexão empírica entre mulheres e natureza, decorrente dessa estrutura dualista. Nessa lógica de dominação, se a natureza e os animais são vistos de forma passiva e podem ser instrumentalizados e explorados, e se as mulheres são conceitualmente ligadas à natureza e aos animais, então as mulheres também são passíveis de serem exploradas e objetificadas. Na prática, isso significa que, mesmo que todas as pessoas possam, em tese, sofrer com os problemas ambientais, as mulheres sofrem mais, junto com outros grupos em situação de vulnerabilidade (crianças, pobres, negras etc.), mostrando novamente as consequências da interseccionalidade.
A escassez de água, por exemplo, afeta desproporcionalmente as mulheres, pois são elas que precisam caminhar longas distâncias para buscá-la. As mulheres são responsáveis pelo cultivo de pelo menos metade dos alimentos no mundo, mas seu trabalho é invisibilizado, pois às mulheres é associado o trabalho da reprodução, não da produção. Considerando que o uso de agrotóxicos tem aumentado cada vez mais, a saúde das trabalhadoras rurais têm sido cada vez mais afetada também. Mulheres camponesas têm denunciado os altos e crescentes índices de mulheres com câncer e outras doenças que podem ser associados aos insumos utilizados nas plantações.
Atentas às consequências dos diferentes tipos de discriminação, as mulheres têm protagonizado um movimento contra o racismo ambiental, o machismo e a exploração dos animais e da natureza. A preservação das sementes crioulas, a luta pela terra, por soberania alimentar, por condições dignas de trabalho no campo e contra a escravidão contemporânea, e a defesa da agricultura orgânica e familiar têm sido algumas frentes de atuação das mulheres por justiça socioambiental.
À quem está nos espaços urbanos, cabe um olhar atento e destituído de preconceitos para os movimentos ligados à terra, aos animais e à natureza, com a responsabilidade de enxergar, no seu dia-a-dia, os impactos da forma como estamos consumindo a vida, no seu aspecto mais amplo: como é a vida das pessoas que estão produzindo nossos alimentos, quem está determinando o que estamos comendo, do que estamos nos alimentando, quais os impactos socioambientais dessa produção. Queremos que sejam trabalhadoras e trabalhadores com direitos respeitados, livres de qualquer opressão, vindos de uma agricultura familiar e orgânica, sem imposição do agronegócio. Que sejam alimentos saudáveis e livres de exploração animal e que a natureza seja respeitada pelo seu valor intrínseco, para que tenhamos de fato justiça socioambiental.
Esse texto é dedicado a Berta Cáceres, defensora de direitos humanos e ambientalista hondurenha, assassinada em sua casa no dia 4 de março de 2016.
Por Daniela Rosendo
Assessora de Formação do IDDH – Graduada em Direito, Mestre e Doutoranda em Filosofia pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).